Quando a questão é ser ou parecer

A questão que Hamlet se colocou diante do pedido que o pai lhe fez provavelmente deve ser uma das questões mais conhecidas e repetidas da Humanidade, pelo menos da ocidental: ser ou não ser? Eis a questão (Ato III, Cena I).

E a questão que cada um de nós deveria fazer-se seria: por que ser ou não ser e não fazer ou não fazer? Afinal, o problema de Hamlet era precisamente isso: fazia ou não fazia? Era correto ou não fazer o que o espectro do pai lhe pedira?

Parece que Shakespeare tinha percebido – todo grande autor tem sempre um quê de profeta – os rumos que a sociedade do seu tempo estava começando a trilhar. Depois que Maquiavel, um século antes, sentenciara que, afinal de contas, o que importava a partir de então não era o ser (ser honesto, justo, virtuoso…) mas sim o parecer ser, então, a questão, não a do Hamlet daquela época, mas a questão verdadeiramente contemporânea e atual é mesmo fazer e manter as aparências.

Para Shakespeare, bem como para toda a tradição clássica anterior, o ato é algo transformador. Quando realizamos uma coisa, quando cumprimos uma tarefa ou desempenhamos um papel, aquilo que fazemos não apenas transforma a realidade, mas, principalmente – e é algo que com muita frequência esquecemos – transformamo-nos a nós próprios. Somos aquilo que fazemos. É o ato quem nos transforma interna e exteriormente. Não são as ideias, nem os sonhos, nem as aspirações, mas os atos que realizamos diariamente que vão configurando o nosso caráter e a nossa personalidade.

O grande problema, como Shakespeare intuiria, é que na sociedade moderna o que interessa agora é mesmo parecer ser. A vida transformou-se num imenso palco onde cada um representa seus papéis. O verdadeiramente importante não é mais ser honesto nem justo, mas “fazer um bom papel” e agir de acordo com o script, com aquilo que se espera ou aquilo que foi determinado em alguma planilha. Todos temos experiência de como em qualquer empresa existem parâmetros, processos e procedimentos perfeitamente normatizados e o único que se espera é que “cumpramos o nosso papel”.

Quem age representando um papel, torna-se uma personagem. Quem age de forma consciente e deliberada querendo ser quem ele é, torna-se uma pessoa. Melhor ou pior, dependendo dos atos que fizer, mas pessoa. O problema é que, como também todos temos experiência, vivemos numa sociedade de “figuras”, “avatares” e “personagens”. O parecer triunfou sobre o ser.

Agimos a partir do que somos. E é por isso que a verdadeira questão, na hora de tomar uma decisão, será sempre ser ou não ser. Quando nos fazemos essa questão antes da decisão estamos escolhendo, na verdade, quem é que queremos ser ao realizarmos uma ação determinada. É por isso que se alguém quiser ser honesto, e não desonesto, então procurará fazer o trabalho honestamente. E é por isso também que se o que pretendemos apenas é parecer ser honesto então a questão ficará bem mais simples. Bastará fazer, voltando a Maquiavel, de qualquer jeito e com quaisquer meios, porque o que importará, então, será disfarçar muito bem esta qualidade e ser bom simulador e dissimulador (Cap. XVIII).

Há um aspecto muito importante que deveria ser levado mais em conta, principalmente quando nos desenvolvemos dentro do mundo empresarial. Uma coisa é realizar tarefas a partir da técnica e outra, muito diferente, realizá-las porque somos virtuosos. Não é por acaso que a continuação daquele verso de Hamlet é uma segunda questão. Na verdade, a decisiva: o que é mais nobre? ( “Ser ou não ser, eis a questão. O que será mais nobre: sofrer em nosso espírito as pedras e setas com que a Fortuna enfurecida nos alveja ou insurgir-nos contra um mar de provações e, em luta, dar-lhe um fim?” (Ato III, Cena I).

Todos temos experiência de que uma das formas mais efetivas de aprender é por meio da repetição de atos. No começo, qualquer coisa que façamos, mesmo as mais corriqueiras e simples, carregam sempre um determinado grau de dificuldade e exigem uma destreza e habilidade. E até certo ponto, podemos dizer que começamos a realizá-las a partir de uma exigência externa (a insistência dos pais, a coação social do grupo, a educação escolar…). Mas chega um momento para cada ser humano que precisa desenvolver essa qualidade por si mesmo. Pelo menos, se quiser desenvolver-se precisamente como humano.

E é precisamente nesse sentido que uma coisa é ganhar essa habilidade por meio da técnica e outra, muito diferente, se for por meio da virtude. A técnica ensina-nos o como fazer e, inclusive, o como fazer bem qualquer produto. À medida que o repetimos, vamos ganhando mais destreza, mais habilidade. Mais técnica. A virtude também nos ensina o mesmo: como fazer bem qualquer coisa e à medida que repetimos os atos vamos ganhando mais habilidade, mais hábitos. Mais virtude. Até aí não parece haver muita diferença.

Normalmente, não percebemos que a virtude, repetida e constante, nos re-estrutura interiormente, nos transforma por dentro. Passamos a ter hábitos e os hábitos são estruturas operativas que configuram todo o nosso ser, nossa inteligência, nossa vontade, nossos sentimentos, nossa maneira, enfim, de ver as coisas, de interpretá-las e de vivê-las.

A técnica não produz essa transformação interior. Não nos configura internamente, nem nos re-ordena. Ela é sim um tipo de conhecimento extremamente importante para fazer as coisas, realizar tarefas e resolver problemas, mas sempre será algo externo a nós.

Para que a virtude seja internalizada é preciso querer fazer a coisa certa de uma forma determinada e por um motivo determinado. Não é qualquer ato, feito de qualquer maneira, que cria em nós um hábito. Pode criar, em lugar disso, uma técnica. A virtude se adquire quando queremos fazer a coisa certa porque precisamente é a coisa certa a se fazer, e o queremos de forma livre, voluntária e espontânea. Para ganhar técnica basta a simples repetição dos atos, sem necessidade de querer realizá-los ou não. Basta que o aprendizado seja assimilado, mesmo que de forma forçada ou quase sem vontade ou interesse, que a técnica será adquirida. Melhor ou pior, mas será adquirida.

Resumindo, a técnica não nos transforma por dentro, os hábitos virtuosos sim. É por isso que um bom técnico não necessariamente é uma boa pessoa. É apenas – e já é muito – um bom técnico que, diante dos problemas terá habilidade técnica para resolvê-los. Enquanto que um homem virtuoso será uma boa pessoa e, nesse caso, é muito diferente ser um bom técnico ou uma boa pessoa. Um bom técnico poderá utilizar a sua técnica e conhecimento para fins perversos. Uma boa pessoa, poderá fazê-lo também, mas dificilmente e não sem violentar a própria consciência.

Há um diálogo maravilhoso entre Hamlet e a sua mãe, onde o Príncipe da Dinamarca está tentando convencer a sua mãe para que abandone o tio e, mais, abandone o caminho que estava trilhando na sua vida. Pede-lhe, então, que tente não ir mais ao quarto do tio, que não durma com ele à noite, que o vá largando pouco a pouco. E esclarece que dessa forma estará começando a ser virtuosa e a ganhar novos hábitos. Estará sendo assim uma outra pessoa. Melhor. E explica que tudo isso será por força da virtude: “assumi a virtude, se não a tendes. O hábito, esse monstro que nos devora a percepção dos maus costumes, contudo é também um anjo que nos dá a roupa que cômoda se ajusta à prática dos atos bons e imaculados”. (Ato III, Cena IV).

Todo homem, sem precisar ser Príncipe de nenhum lugar, qualquer um de nós, pode, precisamente porque é humano e porque quer continuar sendo humano, fazer a mesma pergunta de Hamlet. E responder pessoalmente: quem eu quero ser? Pessoa ou personagem?

Autor: William Shakespeare
Obra: Hamlet
Tradução de Millôr Fernandes

About
Rafael Ruiz
Professor adjunto de História da América da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Fez graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1980), mestrado em Direito Internacional Público pela Universidade de São Paulo (1992) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2002).

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