A Monster Calls e a Verdade Encoberta (Parte I)

A Monster Calls e a Verdade Encoberta
Parte I

 

Revelação, desvelamento. Assim os antigos gregos nomeavam uma dada concepção de verdade (aletheia) – palavra hoje tão questionável quanto fugidiça nestes tempos de fake News, de retratações públicas, de ditos e desditos….

A jornada de descobrimento da verdade, ou de como a desvelamos, é uma das lições que podemos acompanhar na trajetória do garoto Conor, em Sete minutos depois da meia-noite (A Monster Calls), de Patrick Ness, 2011. A descoberta da verdade é o ponto culminante de um processo, na maior parte das vezes, longo e tortuoso. E como muito cedo Conor teve de experimentar, coincide com o fim de uma jornada dramática, cheia de surpresas, reviravoltas, e, não raras vezes, acompanhada de muita dor.

A difícil e dolorosa trilha que Conor teve de percorrer fez com que o monstro fosse chamado. Às 00h07, pouco depois de despertar de um pesadelo terrível que lhe assombrava há tempos, Conor ouviu uma estrondosa voz chamando pelo seu nome. Lá fora, da janela, avistou uma árvore; um teixo, de dimensões realmente gigantescas, de galhos retorcidos e uma casca tão cheia de marcas e reentrâncias que de muito mirá-las se chegava a ver formas tenebrosas com olhos e dentes.

Mas a monstruosidade da árvore, a princípio, não assustou o menino, que já não tinha disposição para tanto. Ele mal acabara de completar 13 anos e já tinha visto coisas mais arrepiantes do que uma árvore. Era justamente isso, sobre o qual não podia falar nem contar para ninguém, que mais o arrepiava e lhe aparecia, durante muitos meses, na forma de pesadelos. O monstro conhecia bem esses sonhos. Ele queria que Conor lhe contasse a verdade; mas não qualquer uma, a sua verdade. Ele sabia que não seria fácil, por isso mesmo tinha vindo. E sabia também que não causaria medo a Conor; ao menos, por enquanto…não antes do fim

O teixo lhe disse então que voltaria por três noites e lhe contaria três histórias, das vezes que já caminhei, lhe disse. Histórias são criaturas selvagens – afirmou o monstro. – Quando você as solta, quem sabe o que podem causar?

 

A Primeira História

 

O primeiro relato do monstro nos leva a paisagens longínquas no tempo mas não no espaço. Ele nos fala de um tempo antes que nesta cidade houvesse estradas, trens e carros, quando tudo isto era um reino. Indiretamente, ele revela a Conor a profundidade de camadas das quais somos feitos, e das quais, em geral, só notamos a superfície. Somos herdeiros de histórias ocorridas desde muito tempo, aqui mesmo, neste mesmo lugar, sobre as quais já não temos mais conhecimento. Contudo, a elas estamos ligados por um fio, o qual, por comodidade lógica, parece-se com a forma de uma linha estendida sobre uma régua, como se o tempo pudesse ser medido, e que nos dá a ilusão de estarmos separados num ponto diferente do momento de outro. As formas, com que os lugares nos aparecem, mudam sem cessar, é de sua natureza. Contudo, toda a riqueza do material humano, os seus dilemas, conflitos e paradoxos já estavam lá. Não há geração pobre em vivências das coisas humanas (ou divinas). Tudo já estava lá. Nem as mentiras que hoje nos contam são tão novas assim…

O monstro narra a história de como um príncipe, neto legítimo de um rei bom, somente a grande custo, chegou ao trono no lugar de sua madrasta. Um custo, que apenas mais tarde, bem mais tarde, nos será revelado… Ele também nos conta que não foi em auxílio desse príncipe que se pusera a caminhar, deixando, por um tempo, a sua forma de árvore. Mas o que lhe havia motivado tinha sido o intuito de garantir que uma rainha considerada bruxa jamais fosse vista novamente.

O monstro é cuidadoso na escolha de suas palavras. Ele sabe que as palavras são sorrateiras, pois seu sentido se insinua em nosso espírito, levando-nos a compreender o que queremos compreender. E, nem por isso, podemos dizê-las mentirosas. De fato, o monstro não mentia. Ele havia mesmo livrado aquela rainha de ser queimada pela multidão como uma bruxa, levando-a para bem longe, onde jamais a alcançassem; lá deixada para viver em paz. O monstro sabia que ela estava sendo acusada por um crime que não havia cometido. Enquanto isso, o verdadeiro assassino era coroado em seu lugar, aclamado pelo povo: ninguém menos do que o jovem e ambicioso príncipe, de quem ele nos falara no começo da história. E que apesar disso, ele nos relata, tinha se tornado um rei muito amado, que governou feliz até o fim de seus longos dias.

Este não era exatamente o fim da história que Conor esperava ouvir! É sensata a sua revolta diante da injustiça revelada pelo teixo só no fim: Então o bom príncipe era um assassino, e a rainha má, no fim das contas, não era uma bruxa. É para haver uma lição nisso tudo? Acontece que o povo daquela aldeia jamais ficara sabendo o que realmente acontecera naquela noite entre o príncipe e a jovem aldeã, por quem o príncipe se apaixonara, apunhalada covardemente enquanto dormia. A injustiça muitas vezes (quem dirá quantas?) triunfa. Verdades permanecem submersas por muito tempo e, com grande frequência, supõe-se, para sempre. E se algum dia, quiçá, quando reveladas, seu momento já passou. O tribunal da história é um carro lento, puxado por cavalos cismados, debatendo-se pela verdade dos fatos. Quando chegam a consenso, as coisas já mudaram, de novo…

Nisso o monstro estava em vantagem sobre nós. Nascido desde o surgimento da terra, o teixo pôde assistir o trem da história passar numa perspectiva privilegiada. Com raízes firmes na terra e os braços abertos voltados para o sol, atendendo apenas ao chamado das estações, ele era uma testemunha ocular um tanto distante dos eventos passados. É ele quem pode nos dizer com credulidade que se trata de uma história verdadeira. É revoltante? Certo que é, e com razão Conor se revoltava com o fim da história do príncipe assassino: Ele foi pego? Eles o puniram? A resposta que o monstro lhe dá é ainda mais intrigante: reinos têm os príncipes que merecem, filhas de fazendeiros morrem sem motivo e, às vezes, vale a pena salvar bruxas. Na verdade, geralmente é assim. Você ficaria surpreso. E por isso mesmo é para nós motivo de reflexão.

Nessa perspectiva, o conto também pode ser lido como uma grande lição sobre a verdade na vida política, e por que não, sobre nós mesmos. Como já adivinhamos a partir do modo pelo qual o monstro escolhe suas palavras, quão apressadamente tiramos conclusões sobre o que nos é dito com base no que é não-dito! Do mesmo modo, com que rapidez julgamos uns aos outros com base em falsas impressões. Em nenhuma dimensão da vida esse fenômeno se reproduz tão facilmente em nossas cabeças quanto a respeito da imagem que fazemos de figuras públicas. Esses homens e mulheres, que dão corpo à nossa imaginação, são colocados lá, no palco da política, manipulando sua própria imagem como num teatro de marionetes. Porém, trata-se, na maior parte das vezes, de um jogo reverso (e perverso), em que as marionetes somos nós mesmos, o povo.

Levados por nossos desejos e expectativas, em que reinos são normalmente usurpados por “bruxas más”, assistimos nesta história a como uma multidão se convenceu de que a madrasta de um príncipe, bela e jovem demais para os favores de um velho rei, triste e sozinho, fosse a autora de um crime horrendo: o assassinato da noiva do príncipe. E o que pensar do príncipe, herdeiro de um rei bom, feito órfão tão cedo e deixado aos cuidados de “tal tipo de mulher”? Uma estrangeira alçada a um trono que não lhe pertencia, por obra do acaso ou do infortúnio de outrem, a morte do rei e de seu primogênito. Acaso? Ou teria essa mulher planejado a morte do rei, sem deixar o menor rastro de assassinato? Magia, bruxaria? Assim esses rumores e impressões deviam se insinuar no espírito do povo daquele reino. Pois, como disse o Teixo, muitas coisas que são verdadeiras parecem enganação. Sendo o príncipe tão amado pelo povo, este não tardou a enxergar a verdade, isto é, de que se tratava realmente de uma bruxa e assassina.

Em aproveito da má fama da rainha, o príncipe precisava apenas de um fato consumado ou um gatilho que movesse as paixões contra sua madrasta; nas suas palavras, ele precisava da fúria dos aldeões em sua ajuda. Convenhamos, não foi nada difícil ao príncipe encontrar uma maneira. Afinal, que camponesa jamais sonhara em se tornar uma princesa de verdade? Foi fácil ao príncipe seduzir a pobre aldeã sem levantar suspeitas sobre si. Pois quem duvidaria das promessas amorosas de um príncipe por uma donzela tão bela quanto a filha única de um fazendeiro simples, honesto e trabalhador? Não foi nada difícil para o príncipe atar os fios de uma narrativa tão verdadeira quanto qualquer mentira bem construída. Se, como disse o teixo, muitas coisas que são verdadeiras parecem enganação, de modo inverso, há muitas mentiras que parecem verdadeiras, mais verdadeiras do que a própria realidade.

E assim, jurando casar-se com a filha do fazendeiro, o príncipe aliciara a seu favor a benevolência da maioria dos habitantes do reino. Aos olhos do povo, a narrativa reunia os ingredientes de um autêntico conto-de-fadas: o amor de um príncipe por uma plebeia e uma bruxa invejosa, ávida de poder. De um lado, uma união que aspiramos ver consumada, de outro, uma vilã que desejamos ver queimada e humilhada. O príncipe havia representado tão bem sua farsa, que ela se tornara verdade, para si, e para os outros. Bem nos ensina o teixo que muitas coisas que ouvimos devem ser creditadas com ceticismo; quer dizer, mais vale abraçar a dúvida diante daquilo que não temos nem podemos ter uma certeza, do que nos lançar apaixonadamente à ação com base numa certeza equivocada.

Se a rainha era mesmo uma bruxa e capaz de um grande mal para perpetuar-se no poder, quem pode dizer? – nos interroga o monstro. Jamais o saberemos, uma vez que seu reinado foi precocemente interrompido, graças aos atos nefastos de um criminoso cuja identidade apenas o teixo conhecia. A verdade sobre nós, como toda a verdade, revela-se com o tempo. Quando julgamos a história finda, o monstro vem em alerta dizer-nos que a história ainda não terminou. É desse modo que ficamos sabendo, junto a Conor, a verdade sobre o príncipe, de como uma inocente aldeã perdeu a sua vida e uma rainha bruxa foi salva da fogueira.

Pena que na vida real não haja monstros nem entidades sobre-humanas, testemunhas oculares dos acontecimentos, que venha a nos revelar a verdade dos fatos. Ou, talvez, para impedir, quem sabe, ao menos de vez em quando, como fez o teixo, que inocentes sejam levados para a fogueira de nossa ignorância e preconceitos.

 

 

 

About
Ana Letícia Adami
Ana Leticia Adami foi Fulbright Visiting Researcher na Universidade de Columbia, NY. É Doutora em Filosofia e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Possui experiência nas áreas de ética e política, com ênfase nos estudos da Retórica antiga e sua reinserção no interior da cultura humanista do Renascimento italiano.

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