A coopetição das plataformas

O recente debate sobre as consequências da decisão de Elon Musk sobre comprar o Twitter, reacendeu em mim a chama maiêutica do questionamento sobre temas complexos. Entre as várias pautas tratadas por especialistas (e palpiteiros como eu), acredito que o ponto de Peter Kafka[i] é o mais interessante: “o homem mais rico do mundo disse que comprou o Twitter porque ele se importa com liberdade de expressão, não com dinheiro. Mesmo que isso seja verdade, Musk terá que se preocupar com a forma como o Twitter está fazendo dinheiro atualmente, porque apesar da plataforma ter o mesmo modelo de negócio do Google e Facebook, a empresa tem muito menos alcance que seus pares, o que torna a sua capacidade de monetização menor”.

Eis a pergunta de um milhão de bitcoins: como devemos fazer para vencer neste ambiente diante da nova complexidade das plataformas? Tenho pensado e trabalhado com este tema com meus alunos do ISE Business School e gostaria de compartilhar algumas ideias interessantes por aqui: (1) a nova dinâmica de mercado forma uma competição em que poucos vencedores poderão levar tudo, (2) as plataformas atuam sob uma natureza coopetitiva que desafia algumas de suas relações complementares,(3) existem evidências relevantes de que se o crescimento exponencial destes negócios não tiver algum freio, levará a mais reações de mercado e a consequências preocupantes para a sociedade.

Antes de mais nada, precisamos admitir: as plataformas já comprovaram seu valor neste Século XXI! Empresas que intermediam relações entre usuários finais e fornecedores foram catalisadas pela evolução do “comportamento de consumo omnichannel”[ii]: relevância crescente dos canais digitais, alto nível de mobilização da população, diminuição das barreiras de acesso à informação e necessidade de controle do processo de compra. Reintermediando digitalmente informações, mídias, produtos e serviços, as plataformas vêm redemocratizando o globo com sua oferta cada vez mais instantânea, ampla, confiável e barata.

Graças às maravilhosas economias de escala que o efeito de rede gera, o crescimento das plataformas parece irreprimível. Quanto mais usuários ativos existirem em alguma das pontas da relação, mais incentivos o outro lado terá para ingressar na plataforma. Para Amrit Tiwana (2013)[iii] a arquitetura e a estratégia são as principais peças do motor evolucionário deste modelo de negócio. Em sua estrutura, elas devem orquestrar um ecossistema bilateral capaz de alavancar a expertise de pessoas e empresas, que estão fora desse ecossistema, sem comprometer a integração da rede. Sua vantagem competitiva é obtida porque elas são capazes de manipular de modo deliberado os efeitos da rede para criar mercados, e não apenas reagir a eles. Assim, as plataformas não precisam “dividir o bolo” com outros concorrentes; elas simplesmente fazem o bolo crescer exponencialmente ou criam um bolo alternativo com novos ingredientes.

Quando olhamos para a relevância que Google, Apple, Facebook e Amazon (GAFA) construíram ao longo dos anos, ficamos muito entusiasmados com as potências deste novo modelo de negócio! Todo mundo que ser também uma “empresa de tecnologia”, “marketplace” ou desenvolver seu próprio “ecossistema digital”. Mas a realidade insiste em nos demonstrar como esta jornada é complexa, longa e custa muito dinheiro! Eduardo L´Hotellier, fundador e CEO do GetNinjas, confessou recentemente[iv]: “O GetNinjas é uma empresa de tecnologia e, como diversas empresas de tecnologia do mundo, precisa de um investimento inicial para desenvolver a plataforma, trazer usuários e criar um efeito de rede. São negócios que consomem muito capital nos seus primeiros anos. Uma forma de acelerar o crescimento em um mercado supercompetitivo é fazer captações privadas e públicas. O objetivo é investir esse dinheiro no presente, criar uma empresa maior e auferir uma geração de caixa também maior no futuro. É algo que acontece há muitos anos nos Estados Unidos e no Brasil”. Eduardo apresentou sua visão sobre como superar a grave desvalorização que sua empresa sofreu graças ao efeito manada dos investidores que debandaram pelo aumento das taxas de juros no país e risco dos ativos do negócio. Ele acredita que “alguns empreendedores de unicórnios postergaram rodadas de investimento para não marcar para baixo sua avaliação, mas a conta vai chegar alguma hora, porque eles vão precisar do capital para seguir em frente”.

Se não fazemos parte deste seleto grupo do GAFA, devemos refletir sobre como ajustar nosso modelo de negócio atual, sustentando-o financeiramente e, ainda, considerar os desafios de ter que concorrer diretamente com estes gigantes digitais. Quando consideramos os 200 milhões de assinantes do Amazon Prime no mundo[v] e sua ampla gama de negócios lucrativos, conseguimos visualizar os riscos de bater de frente com negócios que são capazes de “levar tudo ao vencer” (the winner takes it all); transformando as clássicas arenas competitivas em uma batalha não mais no mercado, mas pelo mercado.

Apesar dos evidentes benefícios que estas plataformas geram para milhões de pessoas, seu crescimento ininterrupto tem gerado questionamentos relevantes sobre o desenvolvimento de monopólios insuperáveis. Em 6 de outubro de 2020, os legisladores do partido Democrata americano apresentaram seu relatório antitruste[vi] destacando que: “empresas que antes eram startups desajeitadas e azaradas, que desafiavam o status quo, tornaram-se os tipos de monopólios que vimos pela última vez na era dos barões do petróleo e magnatas das ferrovias”.

O relatório, fruto de uma investigação que durou dezesseis meses, concluiu que Google, Amazon, Facebook e Apple abusam de sua posição de dominância no mercado para ferir seus concorrentes, incluindo milhões de fornecedores que integram suas plataformas.

Isso só é possível porque as plataformas conseguem transformar os seus negócios interna e externamente ao transferir a influência administrativa de dentro para fora.               Em vez de competir para proteger o valor dentro da empresa, elas criam valor fora por meio  da colaboração de fornecedores que complementam sua oferta. Esta é uma mudança significativa que altera as regras do jogo estratégico do Século XXI: colaborar para crescer enquanto simultaneamente competem para vencer.

A antiga visão da estratégia baseada em recursos assumia que uma empresa devia possuir recursos inimitáveis. Neste novo mundo das plataformas, a vantagem competitiva evoluiu do controle dos bens físicos para o controle da rede consumidor-produtor e às interações que fluem desta relação. Quanto menos a plataforma possuir, abstendo-se de propriedade, mais rápido ela conseguirá crescer e reagir! Esta realidade permite que a plataforma explore apenas as oportunidades que considera mais relevantes, enquanto colabora com seus parceiros do ecossistema para desenvolver as demais.

Em 1996, Brandenburger e Nalebuff[vii] se apoiaram na teoria dos jogos para criar o conceito da coopetição. Os autores diversificaram os papéis da clássica teoria matemática, incorporando o conceito de complementariedade; jogadores concorrentes que poderiam se beneficiar de forma interativa e simultânea, para alavancar resultados mútuos. A dinâmica é paradoxal pois, ao mesmo tempo em que os agentes cooperam para criar mercados, eles podem concorrer para dividi-lo.

Vinte anos depois, Parker, Alstyne e Choudary (2016)[viii], ao tratar da revolução das plataformas-  demonstraram como estas plataformas necessitam gerenciar trade-offs dinâmicos que envolvem três níveis de coopetição: plataforma contra plataforma, plataforma contra parceiro e parceiro contra parceiro. Esta realidade aparentemente incompatível conduz ao jogo de resultado positivo, porém variável. A Zynga começou como uma ideia interessante dentro da plataforma Facebook. O compartilhamento social e os efeitos de rede fizeram com que ela se agigantasse. Para enfraquecer seu poder de barganha individual, o Facebook decidiu incorporar mais de três mil jogos de outros fornecedores. Outro exemplo é o movimento da Amazon de ampliação contínua de sua base de novos parceiros (sellers) para alavancar suas vendas e diversificar o portfólio. Mas, enquanto faz isso, também vende alguns dos mesmos bens dos parceiros, concorrendo diretamente com eles. É um movimento delicado e perigoso  que, embora possa fortalecer a plataforma, o faz à custa de enfraquecer seus parceiros[ix].

À medida que as plataformas desempenham uma influência cada vez mais crescente na economia, sociedade e política, o debate sobre a necessidade de criar sistemas internos de governança equilibrados com sistemas regulatórios externos, vem se tornando mais recorrente. Um relatório recente apontou os riscos de não colocar freios nestes ecossistemas que também têm seu lado “sombrio”.

A disseminação das plataformas tem causado muitos danos nos setores produtivos tradicionais. É natural que empresas e trabalhadores cujos lucros e subsistência estejam ameaçados contra-ataquem com meios que nem sempre melhoram o ambiente de negócios. Um dos mecanismos mais comuns de regulamentação falha foi chamada de “captura regulatória”: a premissa básica é a de que os participantes do mercado sempre agem para influenciar a regulamentação em função de seus interesses – e com frequência pioram ainda mais os problemas subjacentes do setor. Temos um exemplo interessante que aconteceu em São Paulo. Em 2015, o Prefeito Fernando Haddad instituiu uma nova categoria de taxi; os “taxis pretos”, para combater a entrada do UBER e seus carros de “luxo” com serviço diferenciado.  O decreto público autorizava um acréscimo de 25% do valor atribuído a categoria comum, mas o direito à exploração do serviço dependia de uma outorga pública de R$ 60.000. Muitos taxistas se endividaram para participar desta nova categoria premium do serviço de taxi paulistano. Em 2016, para lidar com o crescente número de motoristas pessoais clandestinos do UBER, a mesma prefeitura regulamentou a prestação de serviços de transporte por aplicativo. Com o tempo, o número de motoristas particulares que utilizavam a plataforma UBER superou e muito o número global de motoristas de taxi de São Paulo. A prefeitura tentou de tudo[xi]: triplicou o prazo de parcelamento, ofereceu a possibilidade de pagamento em até 300 parcelas, permitiu que o condutor da categoria desenvolvesse suas atividades na modalidade comum, cadastrasse o veículo para transporte de pessoas com deficiências e, até mesmo, abriu a possibilidade de devolução da outorga em determinados casos. Em 2019, os cinco mil motoristas de taxi preto que estavam com dificuldades financeiras processaram a prefeitura pela ilegalidade na cobrança da outorga. Esta ação foi deferida em segunda instância pelo Tribunal de Justiça em 2021.

Mas também existem reclamações legítimas que devem ser consideradas pelas entidades públicas e privadas. Poderíamos avaliar os impactos a terceiros que não estão sendo considerados pelas plataformas. O Airbnb, por exemplo, é citado nos jornais constantemente com matérias denunciando a má utilização dos imóveis locados, gerando insegurança para os moradores cativos dos condomínios que têm de conviver com desconhecidos em seu ambiente.A responsabilização por falhas, erros e fatalidades que acontecem graças às conexões da plataforma também não é uma questão simples.

Outra questão é a política tributária. Vemos comunidades virtuais que fazem negócios por todo o mundo, expulsando pequenas empresas dos países em que atuam, sem pagar os impostos devidos. A Amazon  utiliza-se da colcha de retalhos dos impostos estaduais e locais nos Estados Unidos para reduzir seu recolhimento de tributos e, assim, manter o preço percebido de seus bens tão baixo quanto possível. A empresa já enfrentou numerosas agências reguladoras e deputados estaduais por questões ligadas a regras de impostos sobre vendas, com frequência recusando-se a coletar impostos, até ser obrigada a fazê-lo mediante a aprovação de novas leis.

Por último, temos a questão de manipulação de consumidores e mercados. Um fato que pode acontecer quando a plataforma atinge um porte tão elevado que deixa de ser uma promotora de encontros entre fornecedores e compradores, para ser um player capaz de influenciar a sociedade em grande escala. A Amazon controla tamanha parcela do mercado de livros online que até editoras gigantescas sentem-se pressionadas a aceitar termos de negócios prejudiciais. Durante uma disputa com o Hachette Book Group (uma das maiores editoras do mundo), a empresa assistiu ao atraso na entrega de seus produtos vendidos online, e ao sumiço dos botões de pré-compra de alguns dos seus títulos.

Em um dos últimos relatórios que li sobre o “estado da arte” das plataformas em 2021[xii], encontrei elementos preocupantes como o surgimento de carteis que controlam a utilização dos dados e a governança dos seus ecossistemas digitais. Isto torna as BigTechs atores globais poderosos, com capacidade para exercer mais influência do que alguns governos locais. Todo debate sobre fake news e direcionamento de conteúdo nas plataformas de mídia digital são relevantes para nosso momento atual.

Será que GAFA dominarão o mundo? Será que Elon Musk vai garantir a liberdade de expressão e transformar o Twitter no novo Yahoo? Uma empresa de alto potencial que não conseguiu bater o Google e acabou sendo vendida por um decimo do valor que já valeu?Não sei! Só sei que nada sei…

A sapientia está na capacidade de continuarmos fomentando estas questões, para pensar com maior profundidade sobre estes elementos complexos e desenvolver melhores critérios para os nossos desafios de negócio.

 

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Negociação é uma habilidade que só há uma maneira de melhorar: na prática. E a prática desta habilidade, como qualquer outra, deve ser acompanhada de uma análise crítica das suas experiências e do compromisso de melhorar até que as novas habilidades se tornem parte de seu repertório.

A metodologia do Programa Estratégias Avançadas de Negociação do ISE está toda voltada para pessoas que já negociam, mas que percebem oportunidades de melhora em suas habilidades que necessitam ser colocadas em campo para testar novos ângulos e analisá-los de forma crítica. Nas sessões do programa, os docentes não apostam em mudanças radicais de estilo, mas sim na capacidade de os executivos desenvolverem um pensamento crítico sobre si próprios, o que permitirá um caminhar convicto na direção desejada, principalmente por ter mais claros os pontos fracos e os caminhos para vencê-los.

Saiba mais sobre o programa

 

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Referências

[i]https://www.vox.com/recode/23041717/twitter-musk-business-plan-peter-kafka-column

 

[ii]https://repositorio.pucsp.br/bitstream/handle/21513/2/Renato%20Braga%20Fernandes.pdf

 

[iii]https://asset-pdf.scinapse.io/prod/2081887392/2081887392.pdf

 

[iv]https://www.infomoney.com.br/do-zero-ao-topo/getninjas-ja-vale-menos-do-que-tem-em-caixa-ceo-compartilha-sua-visao-sobre-empresas-tech/

 

[v]https://finance.yahoo.com/news/amazon-prime-has-200-million-members-142910961.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAIQ39G7RfNxvwnJmVIUL_5ZWqtzyKoOCCFKUOspGd13Yk1pW8tPp44Z_j9x1L3TpDrgIiFe1zEp-whrkstaKmhFllMIHZ6rHysscYwVvRgkOVOGrjcLz3zJuLLLXMEjCBOPAEKTE9piczMZXpz0UqKNZkq1u8pLZJEPVMsjyct_1

 

[vi]https://www.vox.com/recode/2020/10/6/21505027/congress-big-tech-antitrust-report-facebook-google-amazon-apple-mark-zuckerberg-jeff-bezos-tim-cook

 

[vii]https://www.strategy-business.com/article/17483

 

[viii]https://books.google.com.br/books/about/Platform_Revolution_How_Networked_Market.html?id=Bvd1CQAAQBAJ&redir_esc=y

 

[ix]https://hbr.org/2015/10/when-platforms-attack

 

[x]https://platformthinkinglabs.com/materials/the-state-of-the-platform-revolution-2021/

 

[xi]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/01/justica-condena-prefeitura-de-sp-a-devolver-alvaras-de-r-60-mil-pagos-por-taxis-pretos-e-determina-que-categoria-opere-de-forma-comum.ghtml

 

[xii]https://platformthinkinglabs.com/materials/the-state-of-the-platform-revolution-2021/

About
Renato Fernandes
Professor de Marketing com ênfase em Vendas e Membro do Núcleo de Estudos em Negociação, Conflito e Comunicação Mestre em Marketing | PUC-SP Programa de Desarollo de Directivos | IAE Business School Sales Performance: Helping Client to Succeed Facet5: The Power of Personality Graduado em Comunicação Social | PUC-MG Como executivo liderou todo o ciclo comercial de empresas de educação executiva em Minas Gerais e São Paulo. Como Professor, desenvolveu milhares de pessoas em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Brasília. Como Consultor desenvolveu projetos para empresas dos segmentos de mineração, varejo, tecnologia, frotas, hospitalidade, saúde e gestão pública.

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