Viagem ao Labirinto Sentimental, de Jose Antonio Marina

O premiado filósofo e pedagogo José Antonio Marina marcou a história da filosofia com a produção de um livro bastante original quanto intrigante: El Laberinto Sentimental, de 1996. Como o título indica, o autor nos propõe uma viagem pelo interior de um verdadeiro labirinto, o vasto universo dos nossos sentimentos. “Mundo mundo vasto mundo/mais vasto é meu coração”, dizia já nosso poeta Drummond. Também de poetas, romancistas, psicólogos, antropólogos e filósofos é composto este excepcional livro. Vasculhando os diversos recantos da produção intelectual humana, Marina busca os “ingredientes fundamentais que influenciam o balanço afetivo”.

Numa linguagem sempre clara e descontraída, o filósofo-ensaísta nos convida a uma jornada misteriosa por lugares obscuros da alma, distantes da luz da Razão, e junto dela, da própria Filosofia. É passado mais de 20 séculos até que a máxima, na definição de Aristóteles, do “homem como ser racional” pudesse, finalmente, ser desacreditada. “Somos inteligências emocionais”, diz Marina. Ou ainda, “somos seres desejantes, dotados de inteligência”, diz. Não dá mais para ignorar. É preciso coragem para adentrar o labirinto, se queremos vencer o paradoxo da dicotomia razão e sentimentos. Se a obra de Marina não é um tratado filosófico cabal nessa matéria (nem assim se pretende), ele é, sem dúvida, um passo muito importante e bem-sucedido nessa direção.

Os três capítulos que iniciam a obra servem de preparo para a grande viagem, a entrada no labirinto, dividido em sete jornadas – assim mesmo ele as intitula. Nesta preparação, nos recorda que os sentimentos/afetos/paixões são nossos primeiros contatos com a realidade, desde o berço; e por toda a vida, eles estarão presentes, compondo aquela parte de nós que permite distinguir o que de fato “nos interessa e nos conduz à ação”. “Os sentimentos”, diz o autor, “são experiências conscientes, em que o sujeito se encontra implicado, complicado, interessado”.
Na primeira jornada, convém retomar alguns avisos, dados já por filósofos antes de si, como Spinoza, de que a razão, sozinha, nada pode sem apoio dos “saberes do coração”. Mas ao contrário, com a ajuda dela, podemos sim “estudar cientificamente os sentimentos”. É este o propósito da viagem, da “Ciência dos Afetos”.

Na segunda jornada, o autor enumera os ingredientes sentimentais que nos aguardam nessa viagem, e que compõem o balanço sentimental: 1) a realidade; 2) os desejos; 3) as crenças e expectativas; e 4) a ideia que o sujeito tem de si mesmo e de suas capacidades. Por trás de cada resposta afetiva, esses elementos estarão presentes, imiscuídos de um modo difícil de determinar. Os sentimentos, em contínuo processo de mudança, de aparição e desaparição, são prova do complexo dinamismo da relação entre seus ingredientes.

Nossos “desejos”, o mais profundo que pode o nosso conhecimento descer na exploração da anatomia das ações, isto é, sobre aquilo que as motivam, são então confrontados com a “realidade”, ora dura, ora favorável, mas, sem dúvida, um ingrediente que nos afeta diretamente. À categoria dos desejos, somam-se também os impulsos, as necessidades e os projetos (metas, se quiser), entendidos como variações e modulações do desejo. Um desejo, por exemplo, “quando prolongado pela inteligência”, é chamado projeto, capaz de motivar nossas ações por longo tempo.

Na terceira jornada, Os Sentimentos e A Memória Pessoal, o autor explora como nosso conjunto de crenças, hábitos, expectativas e costumes influenciam o balanço sentimental. Para tanto, introduz o conceito de “memória pessoal”: um misto de “fisiologia e informação”, “uma estrutura neuronal capaz de assimilar informação, e de mudar ao fazê-lo, capaz também de produzir e reproduzir informação”. Em suma, conclui, não temos, “somos memória”.

A memória atua em cada um de nós como “hábitos operativos” porque intervém no modo como pensamos, como agimos e como sentimos – o que mais interessa nesta investigação. Nossas crenças, gravadas na memória como “representação do mundo” e das experiências vividas, constituem “hábitos mentais” ou “estilos de pensar” que funcionam com a mesma constância com que a datilógrafa e a tenista executam suas funções motoras. Isto é, diferentemente da “opinião”, mudam com dificuldade, reforçam-se com o exercício e atuam automaticamente.

Na quarta jornada, A Avaliação do Eu, o autor explora o quarto e último ingrediente sentimental, aquele que afeta em maior profundidade nosso self (o “eu”): a ideia que o sujeito tem de si mesmo. Sua influência reside na capacidade que esse ingrediente possui de aumentar ou diminuir nossa confiança de nos enfrentar com as situações. Por outras palavras, ele nos empodera ou enfraquece, altera nosso senso de segurança, orgulho ou timidez.

Para concluir esse imbricado passeio, Marina não se esquiva de tecer uma reflexão sobre esta que é uma das mais complexas e singulares experiências afetivas humanas: o amor. Entendido como um Labirinto dentro do Labirinto – como o título da jornada indica –, o amor não admite ser reduzido a uma única categoria afetiva. Mas ele reúne uma série de múltiplos sentimentos, cuja presença podemos constatar na experiência amorosa, nunca definir. Entre esses sentimentos, o autor distingue o desejo (não de qualquer tipo); o interesse; certa intensificação da vida; alegria na presença/tristeza na ausência; gozo de posse; afirmação de existência do amado(a); necessidade de sua felicidade – esses elementos todos, assim integrados pelo amor, permite-nos falar dele de forma ativa, como um verbo, ou superpotência criadora, capaz de nos fazer sentir e agir conforme os seus ditames; isto é, de nos aperfeiçoar.

Já do lado de fora do labirinto, o autor nos propõe, como despedida, uma breve reflexão acerca da relação entre nossa vida afetiva e a inteligência. “Como julgamos nossos sentimentos?” é o tema das duas jornadas finais. Essas passagens, que representam um passo ousado na tentativa de superar o tradicional dilema “cabeça e coração”, ainda que não esgotem o problema, contudo nos trazem uma interessante inovação sobre o que tomamos como a “fonte da moral”: nem no “puro dever”, nem na óbvia e amplamente aceita “felicidade” (mais uma motivação do que um princípio). Mas é na dimensão afetiva, na dinâmica entre os sentimentos que desejamos manter ou nos livrar, que encontramos os fundamentos para uma Ética; isto é, pela Estética passamos à Ética.

Acredito que é nesse ponto que a Ciência dos Afetos nos oferece a sua maior contribuição. Como defende Marina, os sentimentos são uma “mensagem cifrada”, oriunda “das profundezas” de nosso eu mais íntimo, o qual devemos aprender a decifrar. Exercitar nossa sensibilidade através das Artes, pela literatura, música, pintura etc., abre-nos uma enorme possibilidade de decifrá-los.

Boa jornada!

LabFI / 2021 Recomenda:
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Life Itself (2018)
O Experimento de Aprisionamento de Stanford (2015)
Quanto Vale? (2020)
Quo Vadis, Aida? (2020)
Tell Me Who I Am (2019)
Três Estranhos Idênticos (2018)
Um Ato de Esperança (2017)
Livros
A Virgem na Jaula, de Ayaan Hirsi Ali
As Cinco Linguagens do Amor, de Gary Chapman
História Sem Fim, de Michael Ende
Névoa, de Miguel de Unamuno

About
Ana Letícia Adami
Ana Leticia Adami foi Fulbright Visiting Researcher na Universidade de Columbia, NY. É Doutora em Filosofia e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Possui experiência nas áreas de ética e política, com ênfase nos estudos da Retórica antiga e sua reinserção no interior da cultura humanista do Renascimento italiano.

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