Sobre economia, crédito e Estado na pandemia

A pandemia do novo coronavírus bateu em nossas portas num momento ingrato e nos pegou, a todos e sem exceção no mundo, com as guardas baixas. Ingrato, porque parecia que a economia dava os sinais tão esperados de retomada, com projeções de mercado, ainda no início de março, para algo próximo de 2% de crescimento para o PIB neste ano de 2020.

O que torna esta crise complicada é justamente o fato de ela ser produto da conjunção de dois choques na economia. O primeiro foi um choque de oferta, que quebrou parcialmente as cadeias de produção de suprimentos globais, afetando grandes centros de distribuição (em especial a China), e restringiu a movimentação e acesso aos locais de trabalho, como o fechamento das escolas e outros serviços não-essenciais. Este choque foi chamado pelo Governo de Primeira Onda. A Segunda Onda veio como efeito direto de uma queda abrupta no consumo e na demanda de produtos e serviços. Os impactos desta segunda onda foram ainda piores que os da onda anterior, basta lembrar que o setor terciário no Brasil representa 63% do PIB. Um efeito indireto se deu por meio da redução da renda dos trabalhadores e perda significativa do valor dos ativos brasileiros, em especial, uma queda substancial do market cap na B3. Todos estes choques geraram um aumento na demanda por liquidez, tanto no sistema financeiro quanto no setor real da economia.

Entendendo a gravidade do problema, antes mesmo do próprio Ministério da Economia, o Banco Central antecipou-se e tomou medidas monetárias necessárias para expandir a liquidez do sistema financeiro: reduziu a alíquota do compulsório de 31% para 25%, que representou a liberação de R$ 50 bilhões no sistema; e afrouxou as exigências de capital regulatório dos bancos, o que liberou R$ 86 bilhões adicionais. Comparado com o que foi feito em 2008, cujas ações culminaram com uma injeção de liquidez de aproximadamente R$ 82 bilhões, pode-se dizer que esta é a maior liberação de liquidez já implementada pelo BCB, liberando liquidez de cerca de 16% do PIB. Posteriormente, novas medidas foram tomadas no sentido de aumentar ainda mais a liquidez e liberar capital regulatório dos bancos, tudo isso com vistas a aumentar a capacidade do sistema de conceder crédito ao mercado.

Apesar de muito importantes, porque são basilares para qualquer ambiente financeiro de aumento da demanda por crédito, o Banco Central não consegue ir além deste ponto. O real e grande desafio da economia durante a crise vem sendo fazer com que essa liquidez chegue a quem precisa. Esse, contudo, é papel dos bancos.

A primeira, e principal condição para um banco emprestar recursos, é que haja uma probabilidade razoável de receber o dinheiro de volta no vencimento. A capacidade de pagamento é o ponto-chave. Cada banco tem a sua forma de analisar a capacidade de pagamento, sendo que a maioria recorre a escores de crédito que envolvem análise de informações financeiras, pesquisas de dados no mercado, relatórios internos e conhecimento da indústria, além de diversas outras informações. Mesmo assim, quando o valor é significativo, há ainda um comitê de crédito onde se discute estes dados conjuntamente. Isso tudo para tentar diminuir a assimetria de informações entre o tomador e o banco. O tomador conhece seu negócio muito mais do que o banco e, no limite, sabe se pode pagar, ou não, o empréstimo que pega. O banco, por outro lado, tenta obter o maior número de informações possível para tentar ter a melhor avaliação possível da capacidade de pagamento futuro da empresa.

Pense agora em uma situação onde nem o próprio dono sabe se irá sobreviver, dado que não consegue prever quando será a retomada das vendas. E, mesmo que tenha uma expectativa aproximada de quando as vendas irão voltar, ele pode não saber qual a velocidade desta retomada. Esta retomada pode não ser suficientemente forte para que permita que pague as dívidas contraídas no período da pandemia (dinheiro tomado para passar a crise e postergações fiscais, as quais incidirão assim que a crise passar e duplicarão os encargos fiscais nos primeiros meses pós-abertura). Neste cenário, onde há pouca informação sobre as condições dos negócios e onde a avaliação das condições futuras é extremamente incerta, há pouca visibilidade sobre quem é bom ou mal pagador. Ou seja, a dimensão da assimetria de informação toma proporções enormes e perigosas, fazendo com que o crédito seja liberado somente ao tomador que pode efetivamente apresentar garantias suficientes. Isso, infelizmente, é algo que a maioria das micro, pequenas e médias empresas dificilmente podem oferecer.

Assim, temos um Banco Central liberando liquidez aos bancos e uma concessão de crédito emperrada, devido ao aumento de aversão ao risco e maior assimetria de informações entre bancos e tomadores. Isso cria uma situação chamada de empoçamento de liquidez. Nesta situação, pouco importa se o Copom rá reduzir a Selic na próxima reunião. Pode-se reduzir a Selic a zero, que haverá pouco ou nenhuma mudança nas condições deste empoçamento. Estamos numa situação onde as discussões não são mais relativas à liquidez, mas à solvência.

Num cenário como este, nosso último refúgio repousa na boa implementação de políticas fiscais que diminuam a aversão ao risco dos bancos em emprestar, e que solucionem o empoçamento de liquidez, fazendo com que esta chegue aos empresários. O problema é que medidas fiscais nesse sentido são em geral lentas. Basta ver quanto o governo federal tem demorado para prover um programa para micro e pequenos empresários. Já estamos há dois meses dentro da pandemia e este programa ainda não foi devidamente regulamentado, mesmo sendo estes os tipos de empresas que mais empregam no Brasil.

Uma das possíveis soluções, seria que o governo federal garantisse 100% dos empréstimos às micro e pequenas empresas sem contrapartida de manutenção de folha de pagamento, como fez em outros programas. O momento é tão incerto que nenhum empresário quer assumir um empréstimo que limite sua flexibilidade de escolher entre demitir parte da sua folha de pagamento, mas manter a empresa funcionando por mais tempo e manter todos os funcionários e falir a empresa. Contudo, medidas importantes saíram do papel. Se não fossem, por exemplo, as medidas de flexibilização trabalhista, já estaríamos em uma situação muito pior. Porém, estão longe de serem suficientes. Boas políticas públicas, em qualquer momento da história, foram construídas com diálogo e claro entendimento dos problemas da sociedade. Isso envolve união e debate entre as esferas de governo.

Não adianta nada o governo federal desenhar toda uma política de postergação fiscal para empresas e os governos estaduais e municipais não oferecerem alguma alternativa sobre os impostos que lhe cabem. Assim como não adianta nada o governo federal querer abrir a economia no mesmo momento em que os governos locais sofrem para conter a epidemia.

Governo federal precisa ouvir os governos locais (municípios e estados) porque estes têm mais informações e sentem na pele o que está acontecendo. Por outro lado, os governos locais precisam ouvir o governo federal, pois dele advém o financiamento para contornar o problema, seja pela ajuda direta ou via programas ao empresariado.

Infelizmente, só sairemos melhores desta crise se conseguirmos alcançar duas coisas:  unidade e sentido de Estado. Sem isso, estaremos sempre divididos, sem a possibilidade da construção conjunta de um Estado, estando à deriva entre governos que entram e saem. Estaremos fadados a não sermos mais levados a sério como nação. Pior, seremos fadados ao rótulo de uma nação que não sabe cuidar dos seus.

About
Oscar Simões
Diretor Acadêmico do ISE Business School, Diretor e Professor dos Departamentos de Economia e Direção Financeira, além de professor do Departamento de Direção Geral Doutorando em Economia | EESP-FGV, Mestre em Economia de Empresas | EESP-FGV, Graduação em Administração Pública | EAESP-FGV, PMD – Program for Management Development | IESE Business School Extensa experiência executiva na área financeira e de operações, lidando com produtos relacionados de tesouraria como câmbio, derivativos, commodities e renda fixa em São Paulo, Nova Iorque e Cidade do México. É também pesquisador do Centro de Macroeconomia Aplicada da EESP-FGV.
Showing 2 comments
  • Antonio Lima
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    Muito bom. Como sempre muito claro e direto na sua análise. Tempos difíceis pela frente. Vamos trabalhar duro para volar a crescer.

  • Ricardo Gomes
    Responder

    Perfeito. Mais uma vez temos a oportunidade de mostrar seriedade ao cuidar dos nossos e mostrar ao mundo que nossa nação pode entrar nos eixos. A ver se conseguiremos dar este passo de forma ordenada e construtiva.

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