Inteligência Artificial Generativa e o paradoxo da inovação: chegou a nossa salvação?

“O que você foca, é o que você vê”. Fiquei com esta frase na cabeça enquanto acessava conteúdos díspares sobre a tão afamada Inteligência Artificial Generativa.

Na década de 90, os Professores Arien Mack e Irvin Rock cunharam o termo “cegueira não intencional” para explicar o fenômeno da atenção seletiva nos seres humanos. Quase dez anos depois, Daniel Simons demonstrou o mesmo tipo de efeito com o surpreendente teste dos jogadores de basquete. Se você ainda não viu, corra e assista ao vídeo Selective Attention Test.

O “gorila” de Simons e Chabris (95) representa um alerta para o fato de que tendemos a filtrar o que estamos analisando. Apesar da extensa literatura disponível sobre os mistérios da percepção humana, tendemos a nos esquecer dos riscos que uma análise irrealista pode nos causar. É preciso aprender a “enxergar corretamente” para tomar melhores decisões.

Acho que este momentum hype da nova onda da Inteligência Artificial Generativa nos permite um exercício prudencial. Dê alguns passos para trás, ajuste seu foco, reflita sobre este fenômeno com um olhar diferente. Cuidando para não cair na armadilha de selecionar apenas o que é aparente!

Comecemos pelos contrastes. De um lado, temos os asseclas do progresso técnico científico como Kai Fu Lee que clamam: “IA é uma coisa singular que será maior do que todas as revoluções tecnológicas humanas somadas; eletricidade, revolução industrial, internet e internet móvel. A IA vai afetar todas as indústrias e provavelmente substituirá 50% de todos os empregos humanos, criando uma enorme quantidade de riqueza para a humanidade e acabando com a pobreza”.  

Do outro, temos pessimistas que insistem em negar a realidade para evitar a mudança a qualquer custo. Tenho certeza de que você recebeu recentemente algum meme, ou tweet, com a imagem dos professores de matemática protestando contra a calculadora.

 

Quem tem razão?

Primeiro, os fatos. É inegável que a velocidade das inovações tecnológicas aumentou. Quando você assiste a distopia científica “O jogador número 1” de 2018, baseado em escritos da década de 80, sobre o “fim da realidade natural” e a possibilidade de refúgio na “realidade artificial” em que qualquer um pode se transformar no que quiser, e cinco anos depois você vê Mark Zuckerberg vivendo algo parecido, fica difícil conter o otimismo exacerbado.

Em pouco tempo aumentaram as referências sobre carro voador, automóveis autônomos, robôs humanoides, mochila voadora, leitor de pensamentos… Dá vontade de abrir as janelas e gritar: Agora vai! A tecnologia será a nossa salvação!

O potencial das novas aplicações é muito atraente porque sabemos quanta coisa pode ser melhor! A vida é repleta de injustiças, a história é marcada por incoerências, o trabalho é duro, e as pessoas ainda insistem em não fazer o que sabemos que é o melhor a ser feito!

O problema é que a evolução das coisas nos tenta, e faz acreditar que nunca tivemos tanto poder como temos hoje. Este pensamento é perigoso, porque quando falta realismo, alguma outra coisa ocupa seu lugar.

Mas ora, se fomos capazes de passar do Machine Learning para a Inteligência Artificial Generativa em vinte anos, agora temos o que precisamos para construir o tão desejado futuro ideal! Chegou a nossa salvação!

Por trás dessa ebulição passional que todos nós vivenciamos em algum momento da vida, reside uma pretensão perigosa de nome bem conhecido, e que deveria ser evitada: utopia.

A utopia é uma inclinação Prometeica de tentar construir o “mundo perfeito”. Você se lembra do titã Prometeu da mitologia grega? Ele foi castigado por desafiar os deuses; roubando o fogo de Zeus para dar aos mortais. Esta pretensão de Prometeu representa o que é a utopia; a crença de que graças a “uma nova solução incrível”, podemos finalmente construir uma “realidade” onde os problemas serão resolvidos completamente e as pessoas viverão em harmonia.

Esta ideia pode ser aplicada à sua família, comunidade, empresa, país ou planeta. E qual o problema disso? Além das motivações que moveram as escolhas de Prometeu, o que observamos na prática é que a realidade nem sempre corresponde as nossas pretensões. Muitas vezes a “obra não sai igual ao projeto”, independente das ferramentas que você tem!

Vamos usar o exemplo de uma das áreas que tenho interesse em estudar: o varejo. Até a pandemia, já fazia mais de 100 anos que os futuristas alardeavam que as inovações iriam acabar com o varejo físico. Qualquer pesquisador, ou curioso, encontrará centenas de artigos acadêmicos, ensaios para executivos, entrevistas e notícias, falando sobre o “apocalipse do varejo”, a “morte do vendedor”, até 2019.

Primeiro vieram os grandes magazines, depois o ecommerce, em seguida os celulares. Sem grandes alterações globais, a nova aposta foi a pandemia; o verdadeiro teste, ou great reset?! Segundo os vários especialistas de plantão, as mudanças forçadas criariam “um normal”. Neste contexto, a digitalização das empresas foi acelerada, os hábitos de consumo alterados, tinha chegado a hora de se cumprir a profecia; o varejo físico ia sucumbir!

Este era “o projeto”. A “obra”, mesmo após covid, manteve sua pedra angular: o varejo permaneceu extremamente dependente do canal físico…

As projeções só confirmam que os profetas do caos estavam errados, de novo. Por exemplo, em uma pesquisa recente sobre varejo global, as vendas em 2025 do setor foram projetadas com 12% via ecommerce e mobile, e o “restante” por meio do varejo físico[7]. A China, que tem o varejo mais digitalizado do mundo, tem um ecommerce com representatividade de 46% do volume de vendas do país.

No Brasil, o que os três anos de “novo normal” geraram, foi um incremento de 10 milhões de novos compradores no ecommerce. Este número aparentemente grande, deve ser ponderado com o total da população. Considerando o último IBGE, somos 212 milhões de brasileiros e 148 milhões acima de 19 anos. Destes, apenas 53 milhões são usuários de ecommerce. Se incluirmos nesta lista a quantidade de pessoas abaixo de 19 anos que já realiza compras, chegamos a uma surpreendente conclusão: ainda temos poucas pessoas capazes de realizar uma compra de varejo “totalmente digital”, apesar das tecnologias disponíveis.

Tenho muitos alunos com negócios prosperando no “Brasil profundo”; esta grande parte do nosso território que é marcada pelas diferenças regionais, e muito diferente das megalópoles do Sudeste.

Os antagonistas podem declarar: mas e as plataformas? E o número enorme de pessoas que tem acesso à internet pelo telefone? Nossa vida está muito mais fácil. Veja os bancos! Tem anos que não vou a uma agência….

O exemplo do varejo nos ajuda a revelar uma primeira faceta de um paradoxo da inovação: ter tecnologia disponível não é a mesma coisa que ter a tecnologia implementada e gerando os benefícios que tínhamos concebido! É por isso que as generalizações futurísticas não servem para nada!

Mas se você quer correr o risco de tentar prever o futuro, comece reconhecendo que pouca coisa pode ser prevista. Não dá para aplicar uma mesma regra, ou tendência para tudo. O nosso sistema cognitivo é forçado a filtrar o que você vai ver, porque a realidade é muito maior e mais complexa do que a sua capacidade de compreendê-la. Não se sinta mal por isso, nem a “maior invenção da história” será capaz de realizar isso! Simplesmente porque o “novo normal” não é nada mais que o “normal”; a vida é repleta de incoerências, inconsistências, complexidades e mudanças constantes. Você pode até ser capaz de prever algo olhando para os dados que tem, mas jamais será capaz de prever tudo para todos só porque tem uma nova ferramenta de alto potencial.

 

Mais tecnologia, menos resultados

A segunda faceta do paradoxo da inovação é a mais intrigante: nem sempre a inovação gera melhoria, pelo contrário, em alguns casos, melhores tecnologias podem significar piores resultados!

Vou usar um exemplo de vendas que aprendi com o Professor Howard Dover. A Inteligência Artificial Generativa já comprovou sua capacidade de incrementar produtividade. Com ela, vendedores poderão criar conteúdos muito mais rápido! Novos emails, posts, resumos, pesquisas e dados ao custo de um prompt. Os chatbots já estão aí há algum tempo, atendendo milhões de pessoas 24×7, sem reclamar! Este “projeto” não tem como dar errado! A Inteligência Artificial Generativa é a nossa salvação!

Problema: o desafio de vendas não é adoção de tecnologia, é aplicação da tecnologia! Novamente, o fato de que temos agora um recurso de altíssimo potencial, não é a mesma coisa que ter todo o seu time usando-o da forma que deveria. Meu colega de escola e parceiro de consultoria, o Professor Ricardo Engelbert, investigou esse fenômeno da adoção e apropriação de tecnologias dentro das empresas. Os achados de sua pesquisa demonstraram que existe sim uma grande variabilidade de usos e resultados individuais quando temos uma tecnologia adotada por uma organização.

Não podemos aplicar a lei de Moore em tudo; a evolução tecnológica gerará naturalmente uma redução de custos, e um crescimento de produtividade exponencial. Ao contrário, o que Dr. Howard demonstrou com sua pesquisa é que inovamos, treinamos, capacitamos e expandimos a função de vendas, e mesmo assim, o desempenho geral manteve-se historicamente baixo! Embora a área comercial tenha adotado todas as melhorias tecnológicas disponíveis nos últimos 30 anos, os resultados estagnaram.

Isso acontece porque estas soluções são concebidas a partir do seu ganho potencial de escala. Quando desenvolvemos algo assim, ninguém pensa em uma questão fundamental: como vamos mudar o comportamento das pessoas? Como vamos convencê-las a aplicar esta nova ferramenta? Estas perguntas me parecem bem mais difíceis e menos previsíveis!

A facilidade nem sempre conduz a excelência. Fiquei encantado com algumas ferramentas novas que fazem a transcrição de conteúdos de vídeo e depois criam sínteses em word ou slides em segundos. Em seguida, me veio um pensamento: mas se eu posso sintetizar tudo, o que eu devo ler ou ouvir até o fim? Imagine aquela pessoa que te mandou aquele resumo incrível de um livro super interessante, e que esse conteúdo pode ter a ver com você. Quando você vai falar com ela, tudo que ela sabe está resumido naqueles bullets. E o resto das 473 páginas do livro que me indicou? Eles falam o quê?

Antes de elaborar qualquer resposta, lembre-se: estamos no Brasil! Qual é o nível geral da nossa escolaridade? Como é a nossa cultura? Quantos bons livros (não técnicos) um adulto executivo brasileiro lê por ano?

Minha caixa de mensagens do Linkedin e do Outlook são as provas de que a inovação de “viés eficiente”, também poderá amplificar comportamentos ruins! Hoje, graças à Inteligência Artificial Generativa, o vendedor tem a tecnologia disponível para produzir MAIS e-mails, Inmails, voicemails, em MAIS canais, para MAIS pessoas do que antes. É uma explosão de produtividade ineficaz! Gasto muito menos tempo para escrever um email, por isso escrevo milhares e disparo-os sem qualquer customização.

Qual o resultado disso? Milhares de mensagens não lidas se acumulando, e centenas de pessoas sendo bloqueadas por semana. Confesso que até sinto uma saudade (pequena) daquele gerente do banco que tentava me empurrar um produto de vez em quando, na época que ia na agência física.

“O que você foca, é o que você vê”. A Inteligência Artificial ara o bem: melhorar a qualidade da vida das famílias, comunidades, empresas, países ou do mundo! Mas isso depende de uma evolução e da melhoria das pessoas que estão nestes contextos.

Os paradoxos sempre estarão por aí. As pessoas são o nosso desafio e a nossa solução. Mas elas são o que são, esta mescla de alegria e tristeza, força e fraqueza…

Será que já temos o que precisávamos para construir o futuro que sonhamos? Cabe a cada um de nós responder, em primeira pessoa, o que fará de diferente e de melhor no local em que atua, com as ferramentas disponíveis quGenerativa não é a nossa salvação. Não deposite sua fé no lugar errado! Em todo momento de transformação, será preciso praticar a prudência para aprender a enxergar os fatos de forma mais ampla.

A inovação, a tecnologia, podem ser usadas pe possui.

O resto, deixamos para nossos futuristas e especialistas de plantão!

 

Dédalo inventa as asas que superarão

limitação humana, […] cautelosa e conhecedora,

o velho sobrevive, mas perde o jovem Ícaro, que

em sua juventude imprudente voa muito perto do sol.

Nash, 1978

About
Renato Fernandes
Professor de Marketing com ênfase em Vendas e Membro do Núcleo de Estudos em Negociação, Conflito e Comunicação Mestre em Marketing | PUC-SP Programa de Desarollo de Directivos | IAE Business School Sales Performance: Helping Client to Succeed Facet5: The Power of Personality Graduado em Comunicação Social | PUC-MG Como executivo liderou todo o ciclo comercial de empresas de educação executiva em Minas Gerais e São Paulo. Como Professor, desenvolveu milhares de pessoas em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Brasília. Como Consultor desenvolveu projetos para empresas dos segmentos de mineração, varejo, tecnologia, frotas, hospitalidade, saúde e gestão pública.

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