A Monster Calls e a Verdade Encoberta (Parte II)

A Monster Calls e a Verdade Encoberta
Parte II

Em continuação à resenha de contos de Sete minutos depois da meia noite… Às 00h07 de uma noite confusa para o garoto Conor, depois de uma conversa estranha com o pai, imerso na solidão da casa escura da avó, com os ponteiros quebrados de seu valioso relógio nas mãos, o monstro reapareceu. Ele vinha para contar ao garoto a segunda história. Em contraste com a preocupação ingênua de Conor com o relógio da avó, o monstro lhe trazia uma história de verdadeira destruição. É uma história ludibriadora? – perguntou o garoto. Parece que vai num sentido e então dá uma guinada para outro completamente diferente? Não – disse o monstro. É sobre um homem que só pensava em si mesmo, e ele sofre um castigo muito, muito severo…

Tudo se passou quando uma terrível doença, que varreu o interior do país, fez com que as duas filhas de um pároco, muito respeitado em sua cidade, adoecessem, uma, depois a outra…

A Segunda História

Como da primeira vez, o monstro-árvore inicia sua história com uma viagem ao passado, porém, desta vez, para não muito longe, em um cenário bastante familiar aos olhos de Conor (e aos nossos), quase como se pudéssemos voltar os ponteiros de um relógio com os dedos e fazer com que o tempo andasse para trás…

O monstro nos lança há cento e cinquenta anos, quando este país se tornou um lugar industrializado; quando árvores foram derrubadas e, em seu lugar, fábricas se espalharam pela paisagem como ervas daninhas, campos foram nivelados, rios foram poluídos e o céu se engasgou com a fumaça e a fuligem. Assim o teixo narra como o progresso chegou ao mundo segundo os seus olhos, os de um sobrevivente esquecido no terreno dos fundos da paróquia de uma igreja. Conor foi até capaz de reconhecer a colina, próxima à sua casa, onde o teixo, firme com a terra, sobrevivia até hoje, apesar da ferrovia e da grande fileira de casas que agora ocupam o espaço.

Era a visão do progresso dando seus primeiros passos rumo a uma nova era de felicidade e bem-estar para toda a humanidade – o momento presente de Conor. Mas nem todos estavam contentes com as mudanças. Havia naquela vila um boticário, um nome antiquado, mesmo naquela época, para um farmacêutico. Mas o nome fazia sentido, porque boticários – explicou a árvore – lidavam com a medicina antiga, com ervas e cascas de árvores, com poções feitas com frutos e folhas… O mundo estava mudando e o boticário ficou amargurado…

Enquanto muitos olhavam para o grande teixo da colina como uma simples árvore atravancando a passagem da estrada para o futuro, o pároco e o boticário a miravam de outro modo. O pároco planejava a construção de uma nova igreja e à tal ideia somava como o teixo a protegeria das chuvas pesadas e do clima mais inclemente. Já o boticário desejava com ardor o corte imediato da árvore para extração de remédios. Para um boticário, o teixo é uma árvore preciosíssima. Seus frutos, cascas, folhas, seiva, polpa, madeira, tudo fervilha, queima e se contorce em vida. Ele sabia que um teixo pode curar quase qualquer doença de que um homem padeça, se manipulado e tratado pelo boticário certo…

– Você se deixaria ser morto? – pergunta o menino ofegante ao teixo. Sou muito mais do que apenas uma árvore – falou o monstro. Conor já tinha se dado conta disso. Sabemos também que o teixo não foi derrubado, pois ele ainda permanecia lá, na mesma colina que dava vista à janela do quarto de Conor. Isso teria salvado as filhas do pároco – disse o monstro. E muitas outras pessoas. O monstro esperava que o teixo tivesse sido dado ao boticário quando este o pedira pela primeira vez…

O pároco era um homem bom e esclarecido – dizia o monstro – e queria o melhor para sua congregação. De olhos atentos no avanço técnico e científico, não desprezava a ciência dos homens, queria tirá-los da idade das trevas da superstição e da bruxaria. Ele não era um cientista, nem desses novos nem dos antigos. Mas se havia nele uma ciência ou arte, o que quer que ela fosse, era ainda mais antiga do que a própria ciência ou arte. Seu labor era dirigido pelo interesse pelas coisas divinas, muito além das origens do céu e da terra, e para toda a existência e o seu significado. Coisas que, de certo modo, estavam mais ao alcance do teixo, capaz de viver mil anos e para quem o tempo se esvai tão devagar como o ritmo da própria eternidade.

O boticário, como já dito, era um homem amargurado, avesso às mudanças inevitáveis da torrente chamada progresso. Não que não fosse um homem de ciência, certamente que era. Mas sua ciência era antiga e ele se tornou antiquado, palavra que usamos para se referir àquilo que já não se ajusta mais, está fora de uso, é obsoleto. Ele foi ficando ainda mais amargurado… Além disso, era mesquinho e cobrava demais pelas curas. Não foi difícil ao pároco – igual a como vimos na primeira história – fazer chegar seus sermões a ouvidos ansiosos. O mundo que o boticário uma vez conhecera estava mesmo ruindo, com máquinas, tratores e palavras.

Mas então a peste veio. Como tantas outras tragédias humanas, elas aparecem de tempos e tempos… E fez adoecer as duas filhas queridas do pároco, luz da sua vida. Nada do que o pároco fazia ajudava, nenhuma cura dos médicos modernos…, nenhum remédio do campo tímida e secretamente oferecido pelos paroquianos. Nada. Ele não duvidava da importância da ciência, afinal, que ser humano aceitaria passivamente que crianças fossem levadas deste mundo por criaturas tão insignificantes e com tal poder de devastação? Não. Esta era uma luta que o pároco acreditava que valia a pena lutar.

Por fim, não havia outra opção que não abordar o boticário. O pároco engoliu o orgulho e foi implorar o perdão do homem. Que peso tem o orgulho de um pai perante o sofrimento de filhas queridas? O pároco fez o que tinha que fazer.

O boticário ficou surpreso. Contudo, versado como era na ciência antiga, não lhe escapou, assim como quando olhava para o teixo, o que nele havia por debaixo da casca, do hábito e do discurso. Sua resposta foi uma dura provação para o ordenador de almas: você abdicaria de tudo em que acredita? – perguntou. Se você salvar minhas filhas – declarou o pároco. Abdico de tudo. Então não há mais nada que eu possa fazer para ajudá-lo – sentenciou o boticário, batendo a porta em sua cara.

O boticário sabia, pelo estudo da ciência que aprendera com o teixo, que a crença é metade da cura. Pois que na vida há mistérios insondáveis, maiores do que a ciência das coisas terrenas pode alcançar. Consciente de suas limitações, sabia não haver garantias de salvamento para as filhas do pároco. Era apenas um curandeiro, não um deus entre os homens. Sua ciência podia falhar. Nem por isso ela era em vão, a sua ou qualquer ciência. E por isso ela avança; por isso teixos se deixam arrebatar. E ainda assim, muitas vezes, doenças incontroláveis levam a vida de muitos jovens.

Naquela mesma noite, as duas filhas do pároco morreram. O quê? – perguntou Conor, como se aquilo fosse um pesadelo. Aquele idiota merece ser punido! – dizia a si mesmo, referindo-se ao boticário. O monstro também achava que alguém nessa história merecia uma punição, mas tal certamente não era o boticário, e sim o pároco. Ao contrário do que Conor podia pensar de início, o seu castigo não foi a morte das filhas. O castigo só viria depois, quando o monstro se pusesse a caminhar…

Se parte da cura é resultado do saber produzido pela razão humana, a ciência, a outra metade, diz o teixo, é a esperança, crença no futuro que nos aguarda. E ali estava um homem que acreditava na fé, mas a sacrificaria diante do primeiro desafio, justamente quando mais precisava dela. Nos tempos de bonança, gozando de seu poder e influência, o pároco quase destruiu o boticário, diz o monstro. Mas, quando as coisas ficaram feias, ele estava disposto a deixar de lado todas as crenças; as mesmas que faziam dele quem ele era, fonte de sua credibilidade, princípios e valores, em suma, as suas fundações – as mesmas que a árvore, em punição, destrói com a força dos seus galhos, golpe após golpe, contra a casa paroquial, como quem derruba um castelo de areia…

Sabemos agora, ao olhar para nossa história e para essa modernidade, da qual o teixo é testemunha, que ela conheceu momentos de grande esplendor e rudeza. E nesse percurso, quantos homens de fé ou de ciência não se revelaram servidores do egoísmo e do medo, como o pároco? Isso mata tanto quanto a peste que levou suas filhas. Conor ficou com raiva: Você disse que era uma história sem truques. Disse que era a história de um homem punido por seu egoísmo. Respondeu-lhe o teixo: – E é mesmo.

About
Ana Letícia Adami
Ana Leticia Adami foi Fulbright Visiting Researcher na Universidade de Columbia, NY. É Doutora em Filosofia e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Possui experiência nas áreas de ética e política, com ênfase nos estudos da Retórica antiga e sua reinserção no interior da cultura humanista do Renascimento italiano.

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