Quem nos dera sermos Homens Ridículos!

Temos vivido, a cada dia, mais indiferentes!

Diante de tanto caos, desencontros, desespero e confinamento, se há depositado sobre nós uma fina camada de indiferença e tédio, acentuada pela distância posta entre nós e o mundo que, ultimamente, só podia ser transpassada por alguma pequena janela em nossa casa. Assim, muito brevemente nos acostumamos a saber da dor dos outros só pela televisão, como mais uma notícia dentre tantas que chovem nos nossos ouvidos diariamente e, de tão encharcados, já não nos sensibilizamos mais.

Algo parecido se passou com o Homem Ridículo – de Fiódor Dostoievski – que, ao encontrar-se tão indiferente a tudo, decidiu, naquela noite sem falta, sacar o revólver da gaveta e tirar sua vida. Tudo era insensível a ele, toda a tristeza e podridão do mundo já não lhe surpreendia e, por isso, a vida já lhe era insuportável. Tão indiferente estava que, ao ser abordado por uma menininha em prantos, pedindo socorro por qualquer coisa que havia acontecido à sua mãe, o Homem Ridículo foi capaz apenas de espantá-la, mandá-la procurar outro, e seguiu caminho para sua casa, onde deveria cumprir seu plano suicida. Por que se incomodar com os outros quando se está prestes a morrer?

Foi a pergunta que, como um pedregulho alojado ao calcanhar, acompanhou e perturbou-o durante todo o caminho. Questionava-se: “se eu vivesse na Lua, ou em Marte, e lá cometesse o ato mais canalha e mais desonesto que se possa imaginar, e lá fosse achincalhado e desonrado como só se pode sentir e imaginar às vezes dormindo, num pesadelo, e se, vindo parar na Terra, eu continuasse a ter consciência do que cometi no outro planeta e, além disso, soubesse que nunca mais, de jeito nenhum, voltaria para lá, então, olhando a Lua da Terra – tudo me seria indiferente ou não? Sentiria vergonha por aquele ato ou não?”. Embora a indiferença seja um casaco confortável, que vestimos em diversos momentos da vida afim de evitar o sofrimento e a indignação, nós – e até mesmo o Homem Ridículo – somos naturalmente incapazes de ignorar um pranto indignado de criança. Na realidade, acabamos nos acostumando a fugir, a inventar desculpas para nossa inabilidade em fazer as escolhas certas ou imobilidade diante da maldade, e assim aplacamos a nós mesmos diante das cruéis contradições do mundo.

Ocorre que, uma vez desperto para seu incômodo, o Homem Ridículo pôs-se a pensar, incessantemente, sobre as motivações para a vergonha que sentira ao abandonar aquela pequenina menina. Pensou tanto que se cansou, e de tão cansado adormeceu sobre a mesa onde repousava, junto a ele, o tal revólver. Para sua surpresa, viu-se, de repente, em um sonho estranho, onde tirava sua vida colocando uma bala bem no meio de seu coração – estranhamente, no coração! Não na cabeça, como havia planejado. Depois de morto e enterrado, era retirado de seu túmulo e carregado para um outro planeta, muito semelhante à Terra, mas, de fato, muito diferente em seus habitantes.

Lá todos eram tão puros que seria impossível para nós imaginarmos. “Os olhos dessa gente feliz reluziam com um brilho límpido. Os seus rostos irradiavam uma razão e uma certa consciência que já atingira a plena serenidade, mas esses rostos eram alegres; nas palavras e nas vozes dessa gente soava uma alegria de criança. Ah, imediatamente, no primeiro olhar que lancei aos seus rostos, entendi tudo, tudo! Essa era a Terra não profanada pelo pecado original, nela vivia uma gente sem pecado (…)”.

Aqueles homens e mulheres tão distintos não conheciam a mentira, a inveja ou o rancor, e envolviam o Homem Ridículo em seu habitat repleto de amor – coisa que ele não podia compreender, mas apreendia em seu coração. Porém, como nossos sábios avós costumavam dizer, basta uma fruta estragada para que se comprometa todo o cesto, e não demorou muito para que a influência do Homem Ridículo lhes afetasse a moral.

Sim, sim, o resultado foi que eu perverti todos eles!” De tão indiferente que era, não lhe ocorreu que o mundo, por sua vez, não era indiferente a ele, e que sua existência tinha parte na corrupção daquele mesmo mundo. Quando via a maldade e a ausência de ética que tanto apontava naquela Terra que abandonara através de seu suicídio, o Homem Ridículo jamais tomara partido, jamais esforçara-se a fazer o bem e nem mesmo se pôs a ajudar a garotinha que lhe implorava por atenção. Sua indiferença havia feito dele parte da podridão que ele queria ignorar.

Mas agora ele sabia a verdade! O Homem Ridículo havia introduzido a primeira mentira, o primeiro mal em meio àqueles seres repletos de pureza e então, pouco a pouco, passou a ver aquela Terra abençoada se tornar idêntica ao mundo de que ele advinha. Viu aqueles seres belos corromperem-se em falsidade, tristeza, pobreza e maldade, a tal ponto que lhe feria o peito tremendamente perceber como os amava apesar de sua derrocada. Como seria possível, perante tamanha descoberta, manter-se indiferente? “Implorava-lhes que me pregassem numa cruz, ensinava-lhes como se faz uma cruz. Eu não conseguia, não tinha forças para me matar sozinho, mas queria tomar deles os suplícios (…)”.

Então, com os primeiros raios da manhã, despertou de seu sonho “tomado de um espanto extraordinário;”. Viu seu revólver sobre a mesa, mas decidiu desfazer-se dele e de sua ideia de suicídio, pois agora ele conhecia a verdade e via naquela manhã uma oportunidade renovada: aquela menina o havia salvado a vida!

Finalmente o Homem Ridículo compreendia que, em tempos em que a leviandade e o abandono se fazem presentes e constantes, onde os noticiários nos levam a perder a fé e tudo parece atirado ao precipício, a indiferença só nos afasta mais da salvação. Não basta repudiarmos o mal, é preciso procurar pelo bem, incansavelmente.

Enquanto pessoas, compomos uma rede simbiótica que tem potencial para propagar a luz e as sombras, cabendo apenas a nós escolhermos um caminho, um motivo, que nos torne diferentes daquilo a que o Homem Ridículo se propunha indiferente. Em tempos em que tanto falamos sobre os danos da corrupção e sua contribuição para o ruir da sociedade, é importante que o questionamento sobre o “crime em Marte ou na Lua” esteja em vista: nossas pequenas corrupções diárias são tão diferentes daquelas que criticamos ao lermos o jornal? Nossa inatividade em servir ao bem não tem parte na corrupção do mundo assim como foi com o sonho do Homem Ridículo?

Por incrível que possa parecer, um homem fazendo o bem pode, sim, salvar o mundo, posto que esse único homem, ao fazer o mal, contribui para o lamaçal em que nos debatemos cotidianamente. Isto porque, justamente, ações pessoais estão diretamente ligadas àqueles que nos cercam e impactam à sociedade como um todo. Não existe “decisão insignificante” em uma realidade composta por pessoas.

Agora, o Homem Ridículo conhecia essa verdade e a pregava em todos os cantos. Daí, passaram a chamar-lhe de Ridículo, por acreditar que o bem era inerente ao homem, por crer que esse bem poderia florescer e salvar a todos. ‘O principal é – ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acertar. E no entanto isso é só uma velha verdade, repetida e lida um bilhão de vezes, e mesmo assim ela não pegou! “A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade – superior à felicidade’.

O Amor, costumam dizer, é ridículo, e talvez por isso seja ele, afinal, que há de nos salvar. Quem nos dera ter tido esse mesmo sonho, e por meio dele, tornarmo-nos Homens Ridículos, para que então pudéssemos nos apossar dessa verdade e, por meio dela, rompermos com a nossa indiferença ao outro, espanarmos a poeira que embaça nossa visão e não nos permite notar que a nossa conduta e disposição ao bem é o que pode tudo transformar.

 

DOSTOIÉVISKI, Fiódor. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo

Editora 34, 2017.

 

Artigo elaborado sob a orientação do Núcleo Humanismo e Empresa.

About
Muriel Cristina Vieira
Graduanda em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Eflch/Unifesp), com ênfase em História Moderna e História da Justiça e do Direito, onde é integrante do Núcleo de Estudos Ibéricos e do Centro de Pesquisa em Probabilismo e Retórica Jurídica (CEPPRO). Atualmente, é pesquisadora do Núcleo Humanismo e Empresa (NUHEM) no ISE Business School.
Comments
  • Isalda Regina
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    Hoje me deparo com este artigo especial, que fez me deparar com a dor e a luta de ser “RIDICULA”. Excelente reflexão!

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